Um dia eu termino esse negócio. O novo desafio é escrever e publicar todos os prompts, não importa quantos dias leve 💪.
No dia 4, o tema foi conflitos centrais. Deveria se escolher um conflito entre interno, interpessoal, ou social; e desenvolver um conto de até 1.000 palavras. O conto abaixo tem mais de 1.500 e ainda tem os três tipos de conflito #sourebelde😁.
Traições
Maurício seguia a menos de 30 metros de distância do casal. Eles não perceberam que estavam sendo seguidos, pois estavam completamente absorvidos em seus mundos individuais.
À sua frente, estavam o grande amor de sua vida e o grande obstáculo para que esse amor se realizasse. Lúcia também o amava. Suas cartas e ardentes tardes de desejo mostravam claramente. Ela odiava o marido com fervor, fugiria com Maurício se tivesse a chance, havia-lhe dito pessoalmente durante o encontro furtivo no almoço. Maior prova que um casal não trocar uma palavra com o outro depois de uma noite no teatro não havia.
Um quarteirão, dois quarteirões, assistiu-os caminhar em silêncio. Amanhã, a essa hora, ele estaria em um navio destinado a Deus sabe onde. Passaria seis meses no mar. Enquanto isso, Porfírio teria Lúcia só para si. Inclusive para maltratá-la, como uma vez o presenciara.
Nesse dia, estavam aguardando a mãe de Lúcia chegar à casa para o jantar, mas a senhora, como de costume, estava quase uma hora atrasada. Porfírio irritou-se.
– Como sempre, sua mãe não consegue chegar na hora uma vez sequer. – Reclamou.
– Qual o problema? Não é como se você estivesse morrendo de fome, acabou de comer todos os pãezinhos de alho, não deixou nem para a visita. – Lúcia olhou para mim e piscou.
– Não é sobre fome, Lúcia, é sobre consideração. Sua família não tem nenhuma. O jantar já está frio. – O gracejo de Lúcia só serviu para aumentar a irritação de Porfírio. Levantou-se da cadeira com tanta força que quase a derrubou e foi olhar pela janela. – Um bando de folgados, é o que são.
– Não ouse falar da minha família! – Lúcia se ofendeu. – Você não chega nem aos pés deles.
– Como é? Não chego nem aos pés de uma família que se não fosse pelo meu dinheiro estaria com o nome jogado na lama? – Porfírio retrucou com soberba.
A partir daí, a discursão escalou. Lúcia não aceitava que alguém cujo sobrenome fosse ‘Matossanto’ – um nome totalmente inexpressivo em sociedade – falasse uma palavra sequer sobre os ‘Albuquerque’. Levantou-se e enfrentou o marido de igual para igual.
Nos anos 1930, não era algo muito comum que mulheres afrontassem seus maridos. O resultado foi que, em algum momento, Porfírio perdeu completamente a cabeça, puxou os cabelos da mulher, e a jogou no chão na frente da visita. Maurício não se conteve, segurou o braço do marido e, se a campainha não tivesse tocado naquele mesmo instante, poderia ter acontecido um desastre.
A imagem da mulher amada tentando defender-se e depois caindo ao chão não lhe saíam da cabeça enquanto Maurício dava um passo atrás do outro. Um casal de idosos passou pelos cônjuges mais jovens e sorriu, provavelmente achando que se tratasse de dois amantes apaixonados. Mal sabiam eles que quem deveria estar ali, de braços dados com aquela mulher, era ele.
Mesmo assim, não sabia por que os estava seguindo, talvez o álcool estivesse guiando suas pernas, não a razão. Não havia nenhum motivo para estar ali, naquela noite de domingo, anterior a sua partida para o trabalho. No entanto, a cada passo, sua revolta aumentava.
Mas o que Maurício deveria fazer? Contar toda verdade ao marido traído e exigir dele a separação da esposa? Seria a melhor solução, mas duvidava que o homem fosse aquiescer. Primeiro porque o sobrenome de Lúcia era de extrema importância para que ele pudesse subir a escala social. Segundo porque Lúcia era também o seu grande amor.
Além do mais, uma mulher separada não tinha o respeito da sociedade. Não importava o quanto o nome dos Albuquerque tenha sido salvo da sarjeta pelo dinheiro de Porfírio, pelo sacrifício de Lúcia. Talvez por isso mesmo, não havia dúvida que a família tomaria o lado do marido traído, renegando a parente adúltera e a banindo de seu seio. Ela seria proibida de usar o sobrenome ou mesmo mencionar sua antecedência.
Não que ele deixaria que a reputação de Lúcia fosse denegrida, assim que saísse o documento de divórcio, Maurício se casaria com ela. Ela teria seu nome que, embora não fosse um ‘Albuquerque’, estava longe de ser um ‘Matossanto’. No entanto, a família era extremamente importante para ela, a ponto de se sacrificar em um casamento sem sentimento para salvá-la.
O casal trocou algumas palavras e resolveu cortar caminho por um beco. Não era o caminho de sua casa; caso eles estivessem se dirigindo a algum outro lugar, Maurício poderia perdê-los de vista.
Apressou o passo, a pergunta sobre o que deveria fazer brincando de ciranda em sua mente. Durante os meses que estaria viajando, receberia as cartas de Lúcia e sofreria a dor de não estar a seu lado.
Não conseguia mais pensar direito. Também não deveria mais beber, estava ébrio o suficiente, mas, ao dobrar a esquina para o beco onde havia entrado o casal, tirou a tampa da garrafa de uísque que trazia na mão e bebeu mais um grande gole.
Como seria bom se Porfírio simplesmente morresse.
O casal também havia apressado o passo, ao que parece, haviam percebido que estavam sendo seguidos. Maurício conseguiria alcançá-los facilmente pois Lúcia não podia andar muito rápido devido aos sapatos que estava usando. Ainda estavam a uma meia distância do fim do beco quando Porfírio falou para a mulher.
– Vou ver o que ele quer e segurá-lo por aqui, Lúcia. Vá buscar ajuda e fique em um lugar seguro.
– Por favor, tenha cuidado, Porfírio. – A mulher respondeu e andou o mais rápido que podia para o fim do beco.
Tentar despistar o perseguidor não fora uma boa ideia, Porfírio entendeu assim que percebeu o homem entrando no beco. Não sabia ainda que o conhecia, jurava tratar-se de um ladrão bêbado em busca das joias de Lúcia. Maurício usava o chapéu quase a cobrir-lhe os olhos e não fazia a barba havia três dias, uma face que Porfírio nunca tinha visto. Também estava trajando o casaco de trabalho, jamais usado durante encontros sociais. Mas não importava quem fosse aquele homem, o esposo jamais deixaria alguém tocar na mulher.
Virou-se para o homem. Maurício parou.
– O que você quer? Dinheiro? Aqui está, essa quantia deve dar para você beber até cair, agora deixe-nos em paz. – Disse abrindo a carteira e tirando algumas notas que jogou em direção ao rapaz.
– Eu quero que você liberte minha Lúcia de uma vez por todas. – Maurício respondeu ainda com a cabeça quase toda coberta pelo chapéu.
– Sua o quê? – Porfírio achou que não havia ouvido direito.
– Deixe minha Lúcia em paz, ela não o ama. Ela ama a mim. Dê-lhe o divórcio.
– Quem é você? Identifique-se.
Maurício levantou a cabeça finalmente e Porfírio o reconheceu.
– Seu moleque atrevido, não sei do que está falando, mas há de pagar por isso caso não dê meia-volta e nunca mais apareça na nossa frente.
O álcool ferveu no sangue de Maurício, mas ainda teve frieza para colocar a garrafa a salvo em cima de um parapeito antes de aplicar um murro na cara de Porfirio. Este deu dois passos atrás com o impacto inesperado e resolveu devolver a agressão.
Os dois se agarraram, mas o jovem Maurício, trabalhador do mar, levava grande vantagem: em menos de um minuto, havia dominado Porfírio no chão e o esmurrava com as duas mãos, o sangue do homem já a escorrer pelo nariz quebrado.
– Pare com isso, Maurício, deixe Porfírio em paz.
Nenhum dos dois homens vira que Lúcia estava escondida atrás do muro no final do beco. Ao ver a briga, voltou para apartá-la. Puxou Maurício pelo casaco sem sucesso e acabou caindo no chão quando sua mão escorregou do tecido. O amante não parou de esmurrar o marido.
– Pare com isso, já disse.
Lúcia começou a temer pela vida do esposo. Adorava a aventura com o rapaz, mas ao contrário do que este pensava, o seu coração não lhe pertencia.
– Eu menti para você, Maurício. Não quero me separar de Porfírio. Fiquei com você somente para me vingar da traição dele, mas amo meu marido. Entre nós dois, foi só uma aventura.
O braço de Maurício parou no ar. Ele se levantou lentamente enquanto o abaixava. Lúcia deu alguns passos atrás temerosa, sabia que nunca deveria ter iludido o amante como fizera.
Mais uma vez, Maurício perguntou-se o que deveria fazer. Pegou a garrafa de uísque do parapeito, tirou a tampa, e deu outro grande gole enquanto encarava a pífia amante. Então tampou a garrafa novamente, virou-se, e começou a caminhar lentamente na direção contrária ao casal.
Depois de alguns passos, colocou a mão na cabeça e sentiu falta do chapéu. Precisava de seu chapéu. Olhou para trás para procurá-lo, devia ter caído durante a briga. O torpor o fez cambalear. A garrafa escorregou de sua mão e o fundo quebrou ao bater no chão.
Porfírio já estava de pé, Lúcia havia tirado sua echarpe e tentava limpar o sangue de seu rosto. Era uma cena linda de se ver: estava claro como água que a amante realmente amava ao marido, não a ele.
Quando percebeu que Maurício os estava observando, a esposa começou a empurrar o marido gentilmente pelas costas em direção à saída do beco.
O jovem viu os dois se afastando como em um sonho. Podia jurar que havia uma névoa os envolvendo, mesmo não havendo névoa àquela época do ano. Recolheu a garrafa quebrada do chão, correu cambaleante na direção do casal, puxou o braço de Lúcia, e passou-lhe a garrafa quebrada pelo pescoço, cortando-lhe a jugular.
O que é o Desafio de Escrita de Contos em 30 Dias.
É um evento online oferecido pela mentora Helena Schiavoni Sylvestre, fundadora da Casa do Contista, onde são enviados prompts todos os dias durante 30 dias. O evento em que estive escrita aconteceu entre 12/08/2024 e 10/09/2024.