Ontem tive uma reunião remota tensa e desagradável. Eu senti que meu trabalho e a minha pessoa foram desrespeitados, e a outra pessoa pode ter sentido o mesmo em algum momento, já que não consegui ficar calada o tempo todo.
O resultado foi o conto catártico abaixo. A filha representa meu trabalho; e o narrador, a outra pessoa na reunião.
O Teste de QI
Não entrevistamos os aplicantes. Não, não vou conversar com sua filha, não precisa. Já dá para saber se ela tem futuro ou não baseado só no resultado do teste aqui.
Olha, nós, e todas as outras escolas, na verdade, fazemos o teste de QI para saber qual criança vale a pena aceitar no nosso quadro e qual não é boa o suficiente. É um teste padronizado, desenvolvido por especialistas e empregado com sucesso no mundo todo.
Ele diminui o risco da escola receber crianças fracassadas, porque nós trabalhamos unicamente com as tendências de mercado, não importa tanto assim as crianças, e muito menos os pais, contanto que eles se encaixem sem contestar as tendências. Nossos alunos têm que ter QI acima de 100, que é uma inteligência normal, mediana, mínima. Queríamos mesmo aqueles com QI acima de 110, mas são poucos e não daria para a escola sobreviver só com esses, por isso ainda aceitamos os que são um pouco inferiores.
O resultado da sua menina foi 90, o que já consideramos como retardamento mental.
Sua filha é burra.
Ela não tem muita chance de sucesso na vida, praticamente nenhuma mesmo com esse QI. Não seria uma boa aluna para a nossa escola e dificilmente vai conseguir um bom emprego no futuro. É o que o teste diz. Há milhares de estudos de caso comprovando a eficiência do teste, relacionando o QI com o sucesso, já que ele determina a capacidade e o potencial da criança.
Claro que existem as exceções, mas não podemos trabalhar com as exceções porque precisamos minimizar nossos riscos. Nós nos baseamos exclusivamente nos critérios e padrões que determinam o que é bom e o que é ruim.
Não, nós não somos bitolados! O senhor é que precisa abrir sua mente, furar essa bolha que está aí na sua cabeça e aceitar a realidade que o teste diz.
No entanto, nem tudo está perdido. Se fizerem o que recomendamos, ela pode aumentar o QI. A proposta é que o tempo que sua filha passe brincando, assistindo televisão, conversando com as amiguinhas; ela use para estudar para ver se chega aos 100. Já podemos deixar marcado para ela vir refazer o teste.
Não, não é só até o teste, como ela não é naturalmente inteligente, vai precisar fazer esse esforço extra durante a vida inteira. Sua filha é simplesmente burra, é a realidade, comprovada pelo teste. Ela não é como os outros alunos que atingiram instintivamente uma pontuação de 100 ou mais.
Sim, sim, é muito comum. A maioria das crianças nunca atinge um QI de 100. Na verdade, uma pontuação entre 90 e 100 já poderia ser considerada de inteligência normal ou mediana, mas nós nos damos uma margem para garantir.
Isso, os pais tiram os momentos de divertimento da vida dos filhos e fazem as crianças estudar todo o tempo disponível para tentar aumentar a pontuação.
Nem sempre. Muitos não conseguem nem assim.
É, brincar é importante, diversão e descanso também… mas o que é mais importante para o sua filha: ser uma criança feliz agora ou um adulto bem sucedido no futuro? Pela nossa experiência, no caso de uma criança burra como a sua, uma coisa exclui a outra.
Claro que não é garantia. Na vida não há garantias. Um QI acima de 100 é essencial, mas não garante o desenvolvimento acadêmico nem o futuro. Independentemente do que o aluno faça, há outras variáveis que atrapalham ou ajudam, mas ignoramos essas para fins de quem consideramos bom. Com um QI de 100 ou menos, as chances de sucesso são praticamente inexistentes, o aluno não terá nenhum resultado expressivo, se tiver qualquer resultado.
Há exceções, mas não consideramos as exceções, só a regra. Íamos nos sentir muito inseguros lidando com coisas fora do padrão estabelecido, não precisamos reconsiderar nenhuma regra porque já sabemos o que é o melhor e quem é melhor. Qualquer coisa abaixo de 100 não é aceitável, temos outros alunos e seus pais que nos mostra o quanto o teste é eficiente.
Olha, os outros pais não estão nem aí para o que o senhor pensa e, honestamente, nós também não. Se o senhor gosta ou não, é problema seu, não muda nada. Não é o teste que não é bom o suficiente, é sua filha, ela é burra. O teste nos proporciona escolhas perfeitas e não precisamos de nenhum outro critério.
Todos os alunos que tiveram sucesso aqui tiraram mais de 100 no teste. Pouco importa que mais de 90% deles tenham desempenho medíocre ou nenhum, o que importa são os que chegam ao topo, esses comprovam como o teste é preciso. Exceções são exceções. Nada garante que sua filha seja uma exceção à regra com relação ao retardamento. Não é só porque ela é sua filha que vai ser a criança burra que alcançou o sucesso.
Sim, o que falei é o que aconselhamos. Não necessariamente a criança vá perder a infância, só é ruim no começo, com o tempo fica mais fácil. Ela nem vai perceber que poderia estar brincando ao invés de estudando. Vai é esquecer o que é brincar. Estudar enquanto as outras crianças inteligentes brincam vai ser o normal para ela. Quem sabe ela até aprende a se divertir com o estudo, não é mesmo?
O senhor precisa sair dessa sua bolha! Por acaso está criando sua filha para si mesmo? Existem os outros. Tudo bem, não tem problema se o senhor se contentar que ela fique só ali mesmo em família, com os amigos… mas se o senhor quiser que a menina seja uma pessoa no mundo, ela precisa ter mais de 100 de QI. Caso contrário, as pessoas não vão dar valor. Não vai ser ninguém se continuar como está hoje, ela é burra e o senhor tem uma mente muito fechada. Disse que tinha uma mente aberta, mas não tem não.
Ela não precisa ficar nessa escola, mas todas as outras têm o mesmo procedimento e usam o mesmo teste. Como sua filha é burra, ela não vai passar em nenhuma. Nenhuma escola aceita exceção, principalmente sendo o primeiro filho. Se fosse o quinto ou o sexto filho de pais bem conhecidos, talvez a escola aceitasse porque já garantiu o dela com o sucesso dos anteriores e fica mais fácil fazer o novo se passar por inteligente mesmo não sendo.
Fora dessas condições, pelo que eu tenho visto na minha experiência, criança com QI abaixo de 100 não vinga. Sei o que estou falando, estudei com as pessoas mais renomadas no teste aqui do país. São as mesmas figurinhas repetidas e sabem muito. Eu também sei se o aluno presta só de olhar para a primeira linha do teste, já consigo dizer que não é bom. O senhor é pai de primeira viagem, não sabe.
Qualquer coisa, tem ainda as escolas para retardados. Eles aceitam crianças abaixo de 100, acredito que até 80 consegue entrar. São bastante caras. Se paga um absurdo e elas não ensinam nada. O senhor é quem vai ter que ensinar tudo para a sua filha burra em casa. A diferença é que a menina vai usar uma farda e ganhar a aparência de uma criança inteligente. O estudo extra vai ter que ser na hora da brincadeira, ela vai perder a infância do mesmo jeito, mas se conseguir, ótimo, talvez ela tenha algum futuro, mas é muito difícil.
Ainda tem a opção de o senhor fazer tudo por conta própria, sem escola para retardado nem nada. É de graça. Só é muito trabalho para pouco resultado. Geralmente quem vai por esse caminho só encontra frustração. O risco é baixo e o retorno menor ainda.
E, no final, sua filha continua burra.